terça-feira, 13 de julho de 2010

Ode marítima


(...)
Ah, todo cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por que, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recoração duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
(...)
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
(...)
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em todaa extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim, tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.
(...)
Escuto-te de aqui, agora , e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, (...)
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força par me atrair e puxar,
Que ainda tem força par me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
(...)Ardo vermelho!
(...)
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se o ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

1 comentários:

Anônimo disse...

Otimas palavras, de alguma forma "me vi nelas"... Semelhanças em certas cenas, lembranças... Gosto do teu espaço. Abraço