quarta-feira, 21 de julho de 2010

[definições]

Cansado anseio do meu coração sangrando memórias e barulhando segredos. Pulsando sempre um eu tão cheio de ti que nem sei bem quem me tornei, além daquilo que carrego em mim, comigo. Há mais de ti em mim que jamais imaginava ser possível. E é isso que me faz assim, tão tua, sem ser tua. Tão tua, que me perco em ti, dentro de mim.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Ode marítima


(...)
Ah, todo cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por que, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recoração duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
(...)
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
(...)
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em todaa extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim, tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.
(...)
Escuto-te de aqui, agora , e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, (...)
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força par me atrair e puxar,
Que ainda tem força par me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
(...)Ardo vermelho!
(...)
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se o ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)