sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Exercício mental

Como eu queria ser parte da noite,
Qualquer coisa disforme e sem contornos,
Um lugar qualquer no espaço.
Queria ser parte e ausência da minha não existência...

E costumava ser assim, tão real, tão cheio de vida,
De um vermelho vivo...
Perdeu-se longe. Perdi-me...
Deixei-me. A mim e a todos.
Sigo à espreita do que não é.
(...)Onde está hoje o meu passado?
Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele?
Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo?
Tudo isto deve ter um sentido - talvez muito simples -
Mas por mais que pense não atino com ele.

Saudade de quando a saudade era só saudade e nada mais
E como era simples enquanto não passava de saudade
E não matava de dor de tanta saudade
Saudade...

Seja por esta hora em que me levas a enterrar
o sopro maldito de uma esperança qualquer
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas em silêncio
(...)Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha
Pensar nisso faz frio, faz fome duma coisa que não se pode obter.
Dá-mme não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tênue de confusas coisas na alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos.
Lágrimas, lágrimas inúteis,
Leves brisas de contradição roçando pela face à alma. (...)

Tamanha a minha ânsia de ser mar ou cais!
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E trem em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.
(...)
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
(...)

Ah se pudesse assim arrancar o que me vai no peito sem que a alma se desmoronasse...
E tudo, então, se perdeu, ruiu, sumiu... esvaiu-se e restou o quê?
Linhas, traços, idéias e sentimentos em tinta e papel
Confissões escritas sem valor
Palavras jogadas ao vento
Cadernos cheios de pedaços de mim e a alma pesada de engodos
(...)Ah, por que se armam de lágrimas absurdas os olhos
E que dor é esta, do antigo e do atual e do futuro
Que dói na alma como uma sensação de exílio? (...)

Não me posso aonde não me desejam, mas também não me posso sem ti
E vago num limbo, fingindo uma felicidade que não há,
Inventando alegrias que não existem
Vagando sem destino certo e sem estímulo real
Buscando um não-sei-o-quê
Com a alma enlutada por aquilo que nunca foi
Chorando aquilo que nunca existiu
Numa ferida aberta que não fecha jamais.

Eu, que tive a alma exposta e o coração escancarado
Que mostrei o que sou e o que não posso ser

(...)Todas estas coisas são uma só coisa e essa coisa sou Eu...(...)


O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença...

Exercício mental com fragmentos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

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